terça-feira, 2 de agosto de 2022

Trama e urdidura: a arte de tecer através dos tempos


“Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear. Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte. Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.” (Marina Colasanti, A moça tecelã) 

Ao caminhar pelas ruas de Resende Costa, ainda nas primeiras horas da manhã,  é quase impossível não ser surpreendido pelo som dos teares que, entremeados à conversação  da gente que acorda cedo, dão à cidade um charme muito particular. O município tem se tornado conhecido, merecidamente, como o recanto do artesanato tradicional, pois os seus moradores, recriando processos seculares de tecelagem, proveem o sustento de familias inteiras ao mesmo tempo em que tomam consciência da sua importância no cenário cultural da região. Uma arte que já se incorporou ao cotidiano e à paisagem da cidade, a tessitura tem uma história pontuada de curiosidades; compõe-se ela de saberes e técnicas transmitidos como um verdadeiro tesouro pela comunidade. Por aqui, o desenrolar do dia faz-se ao tear, entre a trama e a urdidura, entre uma prosa e outra. 

 

A tradição herdada

Foram os colonizadores portugueses que trouxeram para o Brasil os primeiros teares com pedais, feitos em madeira. Com eles também chegaram os primeiros artesãos, munidos do conhecimento e dos objetos usados na preparação do algodão ou da lã, tais como a carda, o descaroçador, a roda de fiar, o argadilho e a lançadeira, também conhecida como navete. Rapidamente, a arte de tecer foi se difundindo pela Colônia, nas vilas nascentes, nas fazendas ou nas aldeias indígenas, mas foi em Minas Gerais, à época do ouro, que ela se assentou como atividade expressiva. A presença da tecelagem era tão evidente no cotidiano das mulheres da terra que alguns viajantes estrangeiros, que visitaram as Minas entre o final do século XVIII e início do século XIX, não deixaram de registrar o manuseio de fusos e rodas de fiar. Em 1810, o mineralogista John Mawe, de passagem por São Joao del-Rei, anotava: “cultiva-se um pouco de algodão; que se fia à mão e com o qual se fabricam panos grosseiros para os negros; algumas vezes fazem dele panos mais finos para mesa. As senhoras de São João del-Rei gostam muito de fazer renda, e são consideradas mais cuidadosas com coisas domésticas do que as das outras cidades”.

Os números são batante expressivos para a época. Gustavo Melo Silva afirma, em sua tese de doutorado, que no começo do seculo XIX 37,78% da população de Minas Gerais estava envolvida com as atividades têxteis. Quanto ao antigo Distrito da Laje, sabe-se que pelos idos de 1831, em um universo de 578 mulheres, pelo menos 377 delas exerciam alguma ocupação ao tear. Na sede do Distrito, e ainda mais nos rincões da zona rural, as jovens aprendiam o ofício de fiar e/ou tecer, com as mães e avós. Todo o aparato utilizado na tecelagem era parte do enxoval e, não raro, era transmitido como herança às filhas mais velhas e até mesmo às escravas. Este foi o caso de Micaela Gonçalves de Araújo, dona de uma fazenda na Galga, próxima à atual região do Povoado dos Pintos. Maristela de Oliveira Peluzi transcreve em seu trabalho um trecho do testamento em que a fazendeira deixava para as suas escravas as rodas de fiar e os “trastes de casa”. Curiosamente, a região do Povoado é apontada pela tradição oral como a pioneira da produção artesanal; de fato, os teares mais antigos de que se tem conhecimento podem ser encontrados por lá.

 

Era assim que se fazia...

Terminadas as tarefas domésticas, as mulheres da casa se reuniam para preparar o algodão e a lã que, no fim do processo, seriam levados ao tear e transformados em colchas ou em panos grossos para o vestuário. O algodão chegava nos balaios e logo era colocado no descaroçador; em seguida era a hora de cardar, fiar e tingir, atividades que sobrevivem na memória de algumas das mais antigas tecelãs de Resende Costa. Além do manuseio dos instrumentos, era necessário conhecer a flora local, já que os corantes eram fabricados pelas proprias artesãs; utilizavam os galhos da anileira para obter a cor azul, da quaresminha obtinham o amarelo e com o urucum fabricavam o pigmento vermelho alaranjado. Finalizado o preparo da matéria-prima, as artesãs iniciavam o urdume, com o auxílio de uma urdideira rústica; faziam depois a matemática complicada de dividir e “repassar” os fios pelas casinhas dos “lissos de quatro folhas”  para criar desenhos e padronagens diferenciadas. Os diversos “repasses” recebiam nomes bastante criativos, como dadinhos, cruzeta, fivela, rosinhas de abraço, coroa de Salomão, laranja partida. Ainda hoje podemos encontrar em algumas casas os caderninhos nos quais os repasses eram anotados com delicadeza e cuidado. Na roça o artesanato nem sempre era uma atividade solitária, parte do trabalho era feita em mutirões que adentravam a noite. Todos cantavam e proseavam enquanto os pés tocavam com precisão ritmada os pedais das rodas de fiar.

 

D. Geralda Benzedeira pica Retalhos em Resende Costa há mais de 30 anos 

 

Tudo se transforma... vivendo da arte

Lá pelos anos 1980, Resende Costa recebeu o asfaltamento e com ele, a produção artesanal, que conhecia uma expansão comercial modesta desde a década de 1950,  passou por transformações significativas. As pessoas migravam do campo e, na sede do muncicipio, passavam a ensinar o ofício a um número cada vez maior de pessoas, propagando o artesanato como um meio de vida. A lã e o algodão já não precisavam ser preparados em casa, chegavam pelas mãos de um comerciante ou de vendedores ambulantes, frequentemente os mesmos que revendiam as peças artesanais em outros lugares do país. Ao mesmo tempo, a produção era incrementada com as tramas feitas de retalhos, agregando o valor ecológico do reaproveitamento de resíduos de malharias, que de outro modo seriam descartados pela indústria. As lojas especializadas foram se instalando, as cardadeiras e fiandeiras foram cedendo lugar aos picadores e enroladores de retalhos, a tecelagem e o preparo da matéria-prima deixaram de ser atividades exclusivamente femininas, mas muitas características do modo antigo foram preservadas e estão inscritas na memória das artesãs sexagenárias que ajudam a contar a história de Resende Costa.



Texto extraído de: https://www.resendecosta.mg.gov.br/?Meio=Pagina&INT_PAG=2846
Fonte Imagem: https://www.jornaldaslajes.com.br/integra/resende-costa-oficialmente-a-capital-mineira-do-artesanato-textil/3264


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