segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Artistas mantêm a tradição das carrancas no rio São Francisco

 O rio está lá, azul profundo, e espichando a vista é possível encontrar carrancas presas nas barcaças que fazem a travessia entre Juazeiro e Petrolina, afastando os homens dos demônios. Mas há tanto que a imagem esconde. O São Francisco, cada vez mais assoreado, como também vão sumindo aqueles que dão vida às esculturas encantadas.

Tem seu Paulo, avisam, ali na rotatória em frente ao hipermercado, debaixo de um toldo onde vende uns bancos de madeira. “Ah, mas vai ser difícil demais falar com ele”, Paulo Santos mesmo responde, para só depois se apresentar e dizer que “não faz mais reportagem”. Nem suas mãos encostam mais em madeira para fazer carranca. Conta que deixou o ofício há 12 anos, depois de mais de três décadas de labuta que o fizeram “O Famoso”. Teve fama, mas não teve “êxito”, diz, encompridando uma conversa que parecia que não ia passar dos bons-dias.

Seus filhos não quiseram seguir seu caminho, nem ia ser coisa que ele incentivaria. Salvo uma exceção e outra, diz que não encontrou o reconhecimento devido de quem lhe comprava as obras, nem apoio dos órgãos do governo. Aos 57 anos, nem se aposentar ainda ele conseguiu, é essa agora sua mágoa. 

Mas para não deixar as visitas de longe saírem assim sem história nas mãos – que a sua “já estava na internet para quem quisesse ver” –, Paulo estendeu o braço para a estrada apontando que dali a 20 km de Juazeiro, no povoado de Carnaíba do Sertão, fica Djalma, carranqueiro de longa data.

Na beira da pista já se veem as carrancas que ele faz, com seus olhos esbugalhados e suas bocarras vermelhas feitas para dar medo no que amedronta. Tem os tamanhos todos que o freguês quiser. Uma quase da sua altura foi encomenda de um freguês do Chile, que pagou R$ 900 por ela, e as miúdas pode-se dar de presente, como uma lembrança (custam R$ 8, essas).


Djalma Barbosa, 56, diz que já ensinou mais de cem pessoas a fazerem carranca, mas ninguém quis seguir no ofício. Foto: Shirley Stolze / Ag. A TARDE

Por dentro da casa caiada de branco, metade loja, metade oficina, Djalma Barbosa, 56, conta que aprendeu a fazer carranca quando ainda era menino. Tinha 12 anos. Lembra que viu um cearense talhando aquelas figuras e quis ficar mais para espiar melhor. O homem falou que só para observar o preço era uma das ovelhas que ele carregava. Diz que cumpriu o trato. E que mesmo sem lição apalavrada, só com a vista, aprendeu a fazer carranca, um nome que ele mesmo nem conhecia.

Levou três dias na primeira, que vendeu a um caminhoneiro. “Você me compra essa bichinha?”, perguntou. O rapaz gostou da peça e ainda lhe deu um conselho: “Continue fazendo, que isso nunca se acaba na vida”. E ele continuou.

As primeiras fazia de noite depois do trabalho na roça, na luz do candeeiro. Sentava assim às seis da tarde e às duas da madrugada já tinha 10 carrancas esculpidas. Hoje lamenta não poder trabalhar tanto. O ombro reclama do movimento repetido do machado talhando o tronco de umburana, a força empreendida, e ele também sofre com a epilepsia.

A mulher ajuda na lida. Hoje é ela quem pinta as carrancas e tira a poeira para espalhá-las pelas prateleiras da lojinha. A quem chega ali ele diz que elas são boas para espantar mau espírito e olho-grande. “Se aparecer alguém ruim, vai logo embora. O sangue já para ali”.

Do futuro da carranca, ele não sabe o que vai ser. Conta que já ensinou o ofício a mais de “120” pessoas, mas que nenhuma teve interesse de enveredar por esse caminho. Seus filhos mesmo não quiseram. Capaz, então, de se acabar. “Hoje ninguém quer saber. Eles engancham logo um brinco na orelha e pronto. Não querem trabalhar”.

E para mostrar que ele, mesmo sem poder direito, não tem medo de serviço, pega o machado que o acompanha há mais de 20 anos – a faquinha de fazer os detalhes tem 45 de idade – e vai para debaixo do pé de árvore que fica ao lado da oficina exibir orgulhosamente seus conhecimentos de carranqueiro, com as cabras que passam servindo de cenário e plateia.

“Esse tronco dá duas esculturas”, aponta. “Esse dá três”. Uma machadada para lá, outra para cá, fazem os detalhes da testa. “Se não é na ignorância, não dá nada”, diz, ofegante, numa pausa para descansar do esforço. “Na primeira eu precisei de modelo, mas aqui eu já sei o que sai”.

Depois do machado ainda tem o facão, o formão, a lixadeira, e aí se vai betumar, envernizar, finalmente pintar. Das dez que fazia antes, hoje faz no máximo quatro por dia, de bom tamanho.

Despede-se com um “Jesus seja seu guia” e lembra de um caso (“conto só para vocês rirem”), de quando apareceu por lá um homem, caminhoneiro, querendo uma carranca. E nessa mesma hora de se ir embora ele repetiu o que dizia agora. “Jesus seja seu guia”. E o moço retrucou, rispidamente, que “não gostava dele, não”. “Apois então que o diabo lhe leve”, Djalma emendou, sem hesitar. O importante é satisfazer o freguês.

Inclinação

As primeiras carrancas iam na proa das barcas, de modo que o seu reflexo na água afastasse as criaturas que viviam nos rios, feito o Nego d’Água. O maior carranqueiro do país foi Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany, o mestre Guarany (1884-1985), nascido na cidade baiana de Santa Maria da Vitória. Gostava de fazer umas figuras de cabelos vastos e ondulados. 

Em meados da década de 1940, as pesadas barcas foram sumindo, substituídas por embarcações mais modernas. Quando mestre Guarany passou a ser conhecido, e assediado por colecionadores de arte, as carrancas foram trocando a inclinação para a água por um jeito de ver o mundo de frente e de pé, do mesmo modo que nós andamos. O que era de assustar virou enfeite, apartadas do lugar onde nasceram.

Em Carrancas do São Francisco, publicado em 1974, o pesquisador Paulo Pardal conta que “as figuras de proa” que pontilhavam o rio foram citadas pela primeira vez em obras publicadas em 1888, por Antônio Alves Câmara e por Durval Vieira de Aguiar. “As carrancas do São Francisco são uma manifestação artística coletiva, com caracteres comuns, respeitadas as individualidades de cada artista, como não se encontra em nenhum outro local ou época”, registrou.


A oficina de Seu Bitinho fica no quintal de casa, em Juazeiro. Foto: Shirley Stolze / Ag. A TARDE

No livro ele também conta que em Juazeiro elas eram chamadas de “leão de barca ou cara de pau”. Severino Borges de Oliveira, 78, o Seu Bitinho, o mestre Bitinho, apelidava as suas de macaca. Depois, foram rebatizadas como carranca vampira. São essas de dentes compridos que passaram a ser reproduzidas à exaustão. Sim, foi ele quem as criou. E isso depois de ver um cartaz de um filme japonês do King Kong (e por essa, quem esperava?). “Eu vi a foto no cinema, mandei tirar, e fiz por ele o desenho. As do mestre Guarany tinham os dentes pequenos”.

Do quintal da sua casa no bairro de Piranga, em Juazeiro, transformado em oficina, Bitinho conta que fez a primeira carranca em 1972, a pedido de um engenheiro. Foi o pioneiro. Antes, trabalhava de ferreiro, mas também mexia com madeira. Lembra que fretou uma Rural para buscar três paus e ficou um mês testando até acertar na encomenda. E a partir daí foi tanto pedido que ele diz que nem dava vencimento. “Quando eu vi dinheiro, foi com carranca”.

Agora, conta que a vendagem está pouca, mas dá para viver. A renda melhor tira na Fenearte, em Recife, autoproclamado o maior evento de artesanato na América Latina, que neste ano aconteceu em julho. “O ano todinho eu faço peça pra essa feira”. Por lá, vende as figuras na versão mais popular – pintadas de preto, vermelho e branco – e também as mais rústicas, só na madeira envernizada. Ele diz que não pode parar de trabalhar para não dar vez à depressão. “O que está me salvando é que me ocupo”.

Pai de 19 filhos, Bitinho casou três vezes, e agora vive só. Além das carrancas, faz gorila, faz onça, faz leão, faz santo, faz a senhora da Justiça e faz qualquer figura de madeira que lhe pedirem. Por seu gosto mesmo, só esculpia coisa grande, que é para causar mais impressão. E a vista não ajuda para coisa miúda. “De perto é ruim, não enxergo. Mas pra longe eu atiro voando. Sou caçador”.

Maior do mundo

As carrancas espalham-se por Juazeiro, a cerca de 500 km de Salvador. Adornam as portas das casas, dão nome aos comércios, protegem alguns barcos. Também há uma profusão delas na Casa do Artesão, inaugurada em 2000, de todos os preços e tamanhos. A maior de todas – dita mesmo como a “maior do mundo” – tem mais de cinco metros de altura.


As carrancas não estão mais na proa dos barcos, mas permanecem nas embarcações. Foto: Shirley Stolze / Ag. A TARDE

Ela foi feita por Flávio Mota com o tronco de uma jaqueira que encontrou caída na beira do rio Joanes, em Lauro de Freitas. Levou quase dois anos para ficar pronta e virou símbolo da Conferência Nacional do Meio Ambiente de 2003.

Quem tem alguma idade e boa memória há de lembrar de tê-la visto ali pelas bandas do Rio Vermelho. Mas aconteceu de tentarem botar fogo na obra, imagine só, e ela acabou ganhando casa própria, com vista para o São Francisco, depois de rodar o Brasil. A morada não é, contudo, definitiva. Quem tiver R$ 200 mil pode levar a escultura gigante para onde quiser. 

Flávio, que começou a fazer carrancas em 1979, hoje trabalha com arte ecológica, utilizando madeiras queimadas e secas que encontra caídas por aí, e conta que em novembro ou dezembro irá ministrar uma oficina para carranqueiros na Casa do Artesão, para que a arte não se perca, nem tampouco a mata da caatinga. 




Antonio Lisboa faz carrancas de pedra em Petrolina (PE). Foto: Shirley Stolze / Ag. A TARDE

Atravessando a ponte, nas bandas de Petrolina, em Pernambuco, Antônio Lisboa, 50, não precisa se preocupar com que madeira usar. Ele faz carrancas de pedra. Estava mais acostumado a esculpir bichos de todo tipo, especialmente os peixes, e as corujas, aos quais dava vida desde os 11 anos, mas quando veio morar na beira do São Francisco, há quase duas décadas, resolveu investir nas carrancas, por serem um “ícone da cultura” local.

Desde que a Oficina Mestre Quincas, que reúne artesãos da cidade, foi fechada para reforma, ele trabalha num galpão cedido pela prefeitura. Está lá em “horário comercial”, das 8h às 18h. No dia, pode fazer até 30 das miúdas, que vão para chaveiros ou viram enfeites pequenos.

Petrolina também foi a casa de Ana Leopoldina dos Santos, mais conhecida como Ana das Carrancas, que ganhou fama num universo dominado pelos homens. As suas figuras ela fazia de barro, que ia pegar no leito do São Francisco. Ana morreu em 2008, mas, quando se fala em carranca na região, o povo ainda lembra seu nome. Também é a memória que mantém as carrancas vivas, feito parte do que somos, numa história de travessia em que identidade e resistência se cruzam. 



Texto extraído de: https://atarde.com.br/muito/artistas-mantem-a-tradicao-das-carrancas-no-rio-sao-francisco-1090387
Fonte Imagem: https://atarde.com.br/muito/artistas-mantem-a-tradicao-das-carrancas-no-rio-sao-francisco-1090387

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