Nuá – Música dos Mitos
Brasileiros (ed. Vai Ouvindo, 2009) trata-se de um livro de contos, ilustrado por Kiko
Farkas, que acompanha ainda um CD com trilhas originais para cada uma das
histórias narradas. E foi uma grata surpresa!
Se em Jurupari a narrativa longa não favoreceu completamente a voz autoral de Paulo Freire, em Nuá encontramos seu formato ideal. Os contos episódicos bem ao estilo dos abusões da literatura oral condensam a ação, o que faz a brevidade da descrição se incorporar à proposta. Também não há muito espaço para outros personagens, e acabamos nos centrando na voz e no pensamento do Eu Lírico do violeiro – que é muito mais sincera e interessante, diga-se de passagem.
Cobra que mama, por Kiko Farkas
No total temos 12 contos distribuídos ao longo de 50 páginas e em todos eles o violeiro se coloca seja enquanto protagonista, aquele que enfrenta os mitos, seja como expectador ou sujeito que sofre a influência do fantástico. É o que se mostra no conto que dá nome ao livro, quando o pajé Nuá precisou salvar os seres vivos do dilúvio. Nuá transformou todos os bichos terrestres – inclusive seres humanos – em outros animais que pudessem esperar no céu até as águas abaixarem e a noite ir embora.
Quando o dia nasceu, era tanta afobação para voltar para a terra que Nuá acabou se confundindo e transformando bichos em outras coisas. A família de Paulo virou toda em taturana, conta ele, e só depois de muita conversa conseguiram voltar a ser gente. Por outro lado, teve humano que gostou tanto de ser bicho que fugiu da vista de Nuá para continuar despreocupado na natureza. É por isso que tem tanta gente que preferiu virar macaco, “num autentico caso de evolução da espécie”.
Adoro encontrar no texto de Paulo Freire as marcas da cultura popular que vão para muito além dos mitos, mas que se plasmam em modos de sentir, pensar e agir. O lobisomem, por exemplo, precisa beber sangue durante a noite pois tem menos dentro do corpo e precisa “equilibrar os líquidos“. Desde Galeno (130 d.C) o povo conhece a teoria de que é preciso parear os quatro humores (sangue, fleuma, bile amarela e negra), e é possível encontrar essa referência em várias passagens do folclore brasileiro.
Outro pensamento bastante recorrente, haja visto sua presença inclusive na homeopatia, é a ideia de que “o semelhante cura o semelhante“. Encontramos essa referência em Nuá na resposta que uma cigana oferece para o violeiro se livrar do abraço invisível de uma assombração recorrente: Para aquilo que assusta é preciso causar um medo maior. A solução não é definitiva, e a estratégia precisou mudar para uma outra tática comum aos contos populares: a eufemização. A esganadura sufocante virou um “abracinho gostoso” no discurso do violeiro, até que realmente as mãos relaxaram e trouxeram o aconchego.
Curupira, por Kiko Farkas
É especialmente interessante encontrar na narrativa de Paulo Freire uma dimensão que falta em muita narrativa contemporânea inspirada na cultura popular brasileira: a da sexualidade. Ou, como bem descreve a antropóloga Betty Mindlin em sua apresentação do livro, a safadeza. A escatologia não é escondida, cheiros, chamegos e carícias sexuais também.
O curupira não tem ânus, mas tem um pênis tão monstruoso que o usa tanto para bater nas árvores – verificando se estão firmes – quanto para espancar (ou estuprar) quem derruba a mata. O diabo violeiro passa cantando e deixando apaixonado o mulherio – que mesmo vendo seus chifres e pés de pato, continuam suspirando de saudade suas.
Em uma viagem de barco, a Mão de Cabelo, uma assombração que arranca o pênis dos meninos que fazem xixi na cama, mexendo em seu “biliu”. Paulo prefere fechar os olhos e deixar o mexido ir se desenvolvendo, para “deixar a mão trabalhar e aproveitar o veneno dessa alma boa”. Nada mais brasileiro que isso!
Como as músicas que compõem o repertório de Nuá se relacionam com histórias de mitos e lendas coletadas em diferentes partes do país, Paulo Freire diz que procurou imprimir a cada faixa o ritmo característico da região que a originou.
O causo da Serpente Emplumada vem da Bahia e de Pernambuco, então fiz um coco. A história do capeta é oriunda do sertão de Minas Gerais, daí fiz para ela um lundu. Do Mato Grosso vem a história do lobisomem, a música ficou sendo uma guarânia. Para cada um dos mitos procurei passar, na viola, o sotaque da região da qual são originários. Fiz as músicas como se fossem trilhas sonoras das histórias, mas que, claro, pudessem ser ouvidas de forma independente, diz.
Paulo Freire foi além: ele entregou cada um dos 12 temas que compõem o álbum a um arranjador diferente. Nesse rol, figuram alguns dos principais expoentes da música instrumental brasileira, como Léa Freire, Nailor Proveta, Paulo Braga, Bocato e Toninho Ferragutti. Cada um deles toca na faixa cujo arranjo assina, dividindo espaço com outros instrumentistas do quilate de André Mehmari, Guello, Toninho Carrasqueira e Mané Silveira.
Quando mostrei as composições para os arranjadores, levei junto as histórias, dizendo que era importante ler antes de fazer o arranjo. Conversamos muito sobre a função de cada mito, o movimento que ele tem, porque ele existe ou como surgiu. Foi uma experiência muito bacana, diz, acrescentando que é amigo e há tempos convive profissionalmente com todos os convidados a participar da empreitada.
Eles ficaram entusiasmados e se envolveram muito com a tradição oral brasileira, com a mitologia, então não se tratou só de fazer arranjos para as músicas, mas abarcar as histórias, diz. Ele conta que, intuitivamente, pensou num mito específico para cada arranjador. As músicas mais sensíveis, como O Segredo das Veredas e Lagoa Encantada, entreguei para a Léa Freire. O Bocato tinha que ficar com o Curupira. A Dança dos Tangarás, que são passarinhos, caía bem para o Proveta. Para a Serpente Emplumada, que vem do Nordeste, pensei no Ferragutti. Dei essas músicas a cada um deles e deixei à vontade, inclusive para que indicassem os músicos que iam tocar na faixa e escolhessem o lugar onde ela seria gravada, destaca, acrescentando que, por esse motivo, o disco acabou sendo feito em três cidades diferentes: São Bernardo, Campinas e São Paulo.
Ele aponta que a diversidade de gêneros que Nuá percorre tem a ver com o fato de ter delegado cada música a um arranjador distinto e de eles terem concebido formações instrumentais específicas para o arranjo escrito. Fui na conversa deles. Foi um processo muito bacana o de reviver esses mitos e deixar que cada arranjador dessa sua versão, na forma de música, para o acontecido nas histórias apresentadas, diz.
Texto extraído de:
https://colecionadordesacis.com.br/2018/01/08/resenha-nua-musicas-dos-mitos-brasileiros/
https://www.otempo.com.br/diversao/magazine/cd-explora-ritmos-das-regioes-de-origem-dos-mitos-1.626472
Fonte Imagem:
http://culturabrasil.cmais.com.br/programas/todos-os-sons/arquivo/musica-para-curupira-lobisomem-e-capeta
https://colecionadordesacis.com.br/2018/01/08/resenha-nua-musicas-dos-mitos-brasileiros/




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