Nada Será
Como Antes, Cais, Nuvem Cigana, Trem Azul, Saídas e Bandeiras, Um Girassol da
Cor de seus Cabelos, San Vicente, Cravo e Canela, Tudo que Você Podia
Ser, eis algumas das obras-primas deste disco antológico, o Clube da Esquina,
disco de Milton Nascimento e Lô Borges, de 1972. Um grupo de músicos e
compositores, encabeçado espontaneamente por Milton, realiza naquele ano um
trabalho assombroso, que mexe com todos os parâmetros da cultura musical do
país. É difícil, até hoje, apontar as origens daquelas composições. De onde
saiu uma música como Cais, por exemplo? A melodia era nova, jamais
sonhada antes. Não estava no samba, nem na bossa nova. E não apenas a melodia,
mas também a rítmica, a harmonia, o arranjo (ouça o tema do piano no final da
música) e a letra. Cada faixa apresenta o mesmo grau inacreditável de
originalidade.
Pode-se imaginar algumas linhas de influência deste
trabalho.Talvez Dos Cruces seja uma visita ao Sketches of
Spain, da dupla Miles Davis e Gil Evans. É também a América Espanhola, que
sempre esteve na cabeça musical de Milton. Daí temos ainda San
Vicente. Quem nunca ouviu o bolero Dos Cruces em sua versão original,
não imagina a transformação que Milton ali operou.
Em Me Deixa em Paz, do grande sambista Monsueto,
temos, além da voz de Alaíde Costa, um violão espetacular do próprio Milton,
recriando o samba de uma maneira inédita. Penso que esta gravação seja uma das
maiores da história do samba. Há algo de Jorge Ben nela. No violão e no falsete
com que Milton acompanha Alaíde. Temos aqui, em tudo isso, o atavismo do samba,
o samba do quilombo, o ouro negro.
A balada Trem Azul, bem como as demais
composições de Lô, mostram, com clareza, que havia mais do que a influência dos
Beatles, em seu trabalho. Ele havia alcançado, antes dos vinte anos, o patamar
dos grandes compositores. Suas músicas (nenhuma se parecendo com a dos Beatles)
traziam novidade melódica e harmônica, dentro de uma forma impecável. Talvez Lô
seja o maior compositor de sua geração, no mundo todo. Trem Azul tem
uma certa atmosfera do Pink Floyd, mas sua construção é inédita. Poderia estar
em Eric Satie, ou Debussy! No entanto, ele nos diz nesse livro, com o
despojamento de sempre, que sua contribuição para a música de Milton foi o
violão tocado com palheta.
Algumas questões merecem atenção, quando falamos do Clube da
Esquina, o grupo de músicos. Muitas vezes a crítica do eixo Rio-São Paulo o
coloca como menos importante que o Tropicalismo. Este parecia, de fato, um
movimento. “Eu organizo o movimento/ eu oriento o carnaval”, cantava esse poeta
solar que é Caetano Veloso. Os tropicalistas lidaram com a música e com
questões várias da cultura brasileira. O Clube da Esquina partiu da música para
chegar na música. Não estava preocupado com as contradições musicais, tipo
jovem guarda versus bossa nova. As contradições sociais e culturais – a bossa e
a palhoça, o culto e o inculto, o preto e o branco, o erudito e o pop, a
vanguarda e a massa, o nacional e o internacional - Milton as resolvia à sua
maneira, em sua pessoa singular e com seus amigos. O grupo portava,
talvez mais que o tropicalismo, uma mirada planetária, onde cabiam grupos
ingleses de rock, Miles Davis, música clássica francesa, polirritmia africana,
a música brasileira de então (Tamba, Baden, Edu...) e sabe-se lá o que mais.
Não foi um movimento, e sim um momento, em que as experiências musicais
daqueles jovens se entrelaçaram.
Chico Amaral
Texto extraído de: http://www.chicoamaral.com.br/textos-prefacio.php?c=92
Nenhum comentário:
Postar um comentário