O
som é seco como o chão sob os pés calçados em sapatos simples. Pelas ruas, com
repiques de tambores e chiados de gungas, brasileiros cantam a própria fé. Na
companhia do grupo, vai a pesquisadora Glaura Lucas, buscando compreender os
ritmos musicais das comunidades afro-brasileiras dos Arturos e do Jatobá. O
resultado das observações está no livro Os sons do Rosário - o Congado
mineiro dos Arturos e Jatobá, que acaba de ser lançado pela Editora UFMG.
Em 360 páginas,
Glaura mostra como os rituais do Reinado de Nossa Senhora do Rosário, ancorados
na tradição africana, se manifestam pela música no interior mineiro. "Na
África, orar pela música faz parte da tradição", explica, ressaltando que
isso dá caráter sagrado aos instrumentos, que se transformam em elo entre o
homem e o divino.
Cada grupo, entretanto, aproxima-se da divindade com suas
próprias notas, o que gera parâmetros musicais peculiares e identidades
comunitárias. "Arturos e Jatobá, por exemplo, são grupos musicais
próximos, mas com sotaques particulares", frisa.
De acordo com a pesquisadora, o Congado é composto, em linhas gerais, por manifestações africanas, predominantemente de origem bantu, mas com sincretismos. "O código musical que transita nas festas deriva de interações culturais bantu, reelaboradas no Brasil pelo contato com europeus, com outras culturas negras e também com indígenas locais", diz. Segundo Glaura, a expressão religiosa do Congado desenvolveu-se dentro do sistema escravista brasileiro, como resultado do violento processo de imposição cultural sofrido pelos negros: "Em decorrência dos contatos culturais, eles reelaboraram valores alheios à sua concepção de mundo, reinterpretando o catolicismo por meio de sua própria cosmovisão".
GUARDAS
De origem semelhante, tanto Arturos quanto Jatobá contam com os mesmos tipos de guardas: Congo, Moçambique e Candombe. "As guardas são grupos específicos com características e funções próprias", diz Glaura. Ela afirma que, quanto ao ritmo, o Congo desfruta de maior liberdade, explora sons mais variados. Já o Moçambique está mais preso a padrões básicos. "Isso se explica pelo fato de eles serem os responsáveis pela condução de reis e rainhas". O Candombe é um grupo de ritual interno, que não percorre as ruas tocando instrumentos. Externamente, ele é representado pelo Moçambique.
Como fruto de estudo etnomusical, o livro apresenta uma avaliação da música dentro de seu contexto social e cultural. Para a autora, essa é a maior contribuição da obra: "Não é uma simples descrição dos ritmos musicais, mas o que a música representa para as pessoas que a produzem", relata.
Glaura Lucas diz que, com a mente voltada para os "nego véio" e para os santos católicos, os congadeiros cantam, tocam e dançam, reverenciando Nossa Senhora do Rosário, os antepassados escravos e São Benedito, Santa Efigênia e Nossa Senhora das Mercês. Segundo ela, os congadeiros buscam "na beira do mar" a origem, o princípio, a fundamentação mítica que conta a aparição de Nossa Senhora do Rosário para os negros. "A devoção dos negros africanos à Nossa Senhora do Rosário é atribuída à aparição e resgate de uma imagem de santa, em Argel, na Argélia", afirma Glaura. Ela explica que a lenda foi reelaborada e transmitida de geração a geração, da África para o Brasil, e hoje assume várias versões regionais: "Entretanto, todas têm como ponto convergente a identificação de Nossa Senhora do Rosário com o sofrimento dos negros, com quem ela opta por ficar".
Os rituais do Reinado de Nossa Senhora do Rosário se cumprem pela música,
cuja força emana dos sons dos instrumentos sagrados, dinamizando os textos
cantados e os gestos do corpo, num ato único de oração. Vencedora do Prêmio
Sílvio Romero em 1999, está obra faz uma análise do Congado das Irmandades de
Contagem (Arturos) e do Jatobá a partir de sua paisagem sonora e musical, com
ênfase na linguagem rítmica dos instrumentos sagrados, por ser essa a
referência musical que mais identifica cada grupo – Congo, Moçambique e
Candombe.
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