"Mistério" de Mestre Piranga será revelado em livro e documentário
Olhos esbugalhados e estrábicos,
mais a cabeleira em contornos triangulares, são características das esculturas
de "Mestre Piranga". Na foto, escultura de Nossa Senhora das Mercês(foto:
Marcelo Sant'Anna/EM/D.A Press)
A riqueza de Minas Gerais no
período colonial contribuiu para o desenvolvimento de ambiente cultural sem
precedentes no Brasil do século 18. Para atender à demanda da Igreja Católica,
artífices produziram intensamente obras sacras, que se tornaram um dos
principais legados artísticos daquela época. Aleijadinho, que morou em Ouro
Preto e atuou em várias partes do estado, é o mais conhecido e valorizado de
todos. Mas outros artistas, por falta de pesquisas aprofundadas, permanecem
desconhecidos. “Mestre Piranga”, designação da oficina que se instalou na Zona
da Mata, é um exemplo que se encaixa perfeitamente nesse contexto.
Para entender esse fenômeno das
artes plásticas, aproveitamo-nos aqui do artigo “O imaginário e inimaginável
santeiro, todo Aleijadinho”, do falecido museólogo Orlandino Seixas Fernandes,
publicado em 1981 no Suplemento Literário de Minas Gerais, que contextualiza o
ambiente artístico da Capitania das Minas do Ouro após seu desmembramento da
província de São Paulo, homologada pela Coroa portuguesa no ano de 1720:
"... Ao contrário da costa,
onde tudo eram sedimentações, conservadorismos e persistências, bem típicos das
atividades de comércio, e transporte nelas sobremodo exercidos, nas Alterosas,
ao invés, tudo estava sempre por fazer-se ou sendo refeito, nada era estável
posto que o próprio solo de contínuo era movido pelo interesse humano ou
consequência dele...."
Tratava-se, portanto, de uma
sociedade heterogênea, conflitante, em que se relacionavam pessoas de
diferentes origens e culturas, com pontos de vistas e níveis educacionais
distintos, mesclando o erudito com o popular, de forma tumultuada e dinâmica.
Escultura
de Nossa Senhora da Conceição em madeira policromada é exemplo de peça
produzida no século 18 pela oficina de barroco mineiro "Mestre
Piranga"(foto: Denise Andrade/Divulgação)
OFICINAS
Em meados do século 18, as vilas
agruparam uma grande variedade de oficiais e artesãos, permitindo o convívio do
"... artista português erudito ao lado do popular e ambos ao lado do
improvisador arcaizante, luso ou africano, do improvisador primitivo negro ou
indígena, e do exótico imitante a marfins e outros efeitos do Oriente
importados", ainda sob a ótica de Seixas Fernandes.
Essas comunidades mineradoras,
formadas circunstancialmente, viram-se na necessidade de empregar soluções
próprias, criativas, que amenizassem o elevado nível do custo de vida na
capitania. A presença de ateliês nas tendas e nos canteiros de obra, com todas
as tarefas distribuídas planejadamente, revela o caráter de equipe da produção
artística setecentista, também com características artesanais, em que havia
esquemas hierárquicos envolvendo aprendizes, ajudantes, além da relação
mestre-discípulo.
As esculturas produzidas por
“Mestre Piranga” primam pela originalidade, com peculiaridades inconfundíveis,
totalmente distintas de tudo do que até então havia sido produzido na Capitania
das Minas do Ouro no decorrer do século 18. Sua composição volumosa e de
extrema força plástica é realçada pela resolução em saliência dos ombros,
recortes ovalados da indumentária na altura dos joelhos, aliada à excessiva
dramaticidade anatômica das faces e suas reconhecidas particularidades, como
olhos esbugalhados e estrábicos, mais a cabeleira em contornos
triangulares.
Esse conjunto escultórico, fora de
dúvida, é fruto do envolvimento de variados artesãos e aprendizes que, sob a
coordenação de um mestre do ofício, se alinharam esteticamente a um mesmo
padrão de criação, haja vista a variedade das obras, as quais, ainda que
apresentando diferenças pontuais entre si, mantêm a mesma concepção artística
em suas elaborações.
Os recortes ovalados dos
panejamentos nas figuras entalhadas, efeito de extremo impacto visual, foram
muito empregados pelos escultores europeus que trabalhavam a pedra, material
difícil de ser modelado. Sabe-se que os canteiros da Europa, na Idade Média,
adotavam determinados procedimentos técnicos com ferramentas especiais, no
intuito de conseguirem resultados plásticos de maior realce, obtidos facilmente
na madeira, em função da sua maciez.
Ora, essas ogivas, juntamente com
os recortes triangulares que dão movimentação aos panejamentos das figuras
produzidas pela oficina de Piranga, foram esculpidas única e exclusivamente na
madeira e tudo leva a crer que essa técnica tenha sido aproveitada por um
profissional com experiência em cantaria e que transportou seu método para o
inusitado suporte, fato esse muito comum na região das Minas, palco propício
para experimentos e improvisações artísticas.
Obras
de "Mestre Piranga", pertencentes ao acervo do Museu Mineiro, em
exposição permanente
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